2008/01/10

O Tratado de Lisboa: Democracia podre

A questão do referendo ao Tratado de Lisboa é mesmo muito séria, porque abala as bases da Democracia. O Governo, o Presidente da República e a Assembleia da República, todos eles, violaram gravemente os seus deveres constitucionalmente estabelecidos. Explico porquê.

Quando um Governo nasce do resultado de um acto eleitoral, e na sequência da apresentação do seu programa que foi validado pelos eleitores, é seu dever aplicá-lo. Atendendo a que o mundo está em permanente mudança e que ninguém tem a capacidade de prever o futuro com rigor absoluto, aceita-se que a prática seja diferente do previsto no programa, precisamente para a ajustar às novas situações. Mas é preciso que as situações sejam de facto novas, e que as alterações ao programa sejam as mínimas indispensáveis.

Um exemplo caricatural: imaginemos que um partido ganhava com maioria absoluta depois de ter prometido baixar os impostos para metade e subir as pensões de reforma para o dobro. No primeiro dia de Governo, contudo, fazia exactamente o contrário: os impostos subiam para o dobro e as pensões desciam para metade. Qual era o dever do Presidente da República? Demitir imediatamente o Governo, dissolver a AR e convocar novas eleições.

Os eleitos têm de perceber que são representantes do povo, não são "encarregados de educação" do povo. Se se apresentam com um conjunto de ideias que é sufragado pela população, é isso que devem concretizar. Não têm mandato para tomar decisões estruturais que nunca foram propostas nem votadas, a menos que as circunstâncias fossem completamente novas e a urgência impeditiva de uma consulta popular. No caso deste referendo, nem uma coisa nem outra.

Sublinho que o que aqui está em causa não é saber se o Tratado de Lisboa é bom ou é mau, mas sim se é legítimo (invocando o interesse nacional, ou o interesse europeu, ou a ignorância da população, ou a complexidade do tratado, ou seja lá o que for...) evitar um referendo porque se receia que o respectivo resultado seja negativo! É a subversão total da Democracia!

É evidente que em Democracia os resultados do voto popular nem sempre são aquilo que cada um de nós, individualmente, consideraria o mais sensato. Mas essa é a essência da Democracia! Ninguém tem o direito de aproveitar o facto de ter sido eleito para, depois disso, fazer tudo o que lhe apetece. É esse, aliás, o mal também de Rui Rio no Porto (em alguns aspectos tristemente parecido com Sócrates).

Se o referendo a um "Tratado Constitucional" foi prometido antes das eleições, não há razão válida para suprimi-lo no caso deste "Tratado de Lisboa". Ponto final.

O que agora me parece indispensável, à luz destes princípios, é invocar a inconstitucionalidade da decisão de ratificar o tratado no Parlamento, e levar o caso ao Tribunal Constitucional. E também convém não nos esquecermos de quem são os responsáveis por este abuso do sistema, quando formos votar da próxima vez.